Long Live The República

por Nuno A.



To all you phonies





A república é um grifo. A república é um grifo morto pelas costas. A república é um grifo morto pelas costas e embalsamado. Sarandava emplumado por aí à procura da carcaça de D. Sebastião quando foi legitimamente abatido pelo varino. Pairando nos céus pertencia à monarquia, mofando no museu de história natural passou a ser propriedade da república. Eis a besta subjugada que todos os anos por esta altura sai à rua no cimo enflorado de um andor trazido por um país miserando o peso de uma herança cada vez mais inútil. De que nos servem caravelas encalhadas, epopeias em catálogo, impérios de protocolo?



Antes de ontem fui ao Teatro Nacional São João ver A Gaivota, apresentei o bilhete e deixaram-me entrar. Hoje em dia por dezasseis euros entra qualquer um; se fosse no Centro Cultural Vila Flor seria por dez e na Trofa, que não possuiu teatro ou auditório, talvez me pagassem para assistir à peça, mas o TNSJ é outra coisa, relíquia da monarquia, é a honra de beber pelo corno da besta.



Um século de existência é aniversário respeitoso, pelo menos ficou bem num Manoel de Oliveira que toda a vida fez filmes. No caso da república, porém, talvez ainda seja prematuro proclamar os parabéns desejados, quero eu dizer, enquanto o Estado Novo detiver a maioria relativa do período a salva de palmas soará sempre a final de concerto sinfónico de segunda interpretado pelos filhos da terra.



Ah! de espanto. O interior é lindíssimo, cor de burro quando foge coroado de louros dourados, pinturas da bandeira republicana, esculturas gregas e frescos barrocos... só lhe falta uma temporada inteira de ópera.



O Agostinho da Silva deve estar a dar pulos de satisfação na tumba, agora que o número de desempregados aumentou e há neste pais mais quem se dedique ao livre pensamento. Aliás, as ruas estão lotadas dessa recente cultura que consiste em implementar nas praças, nas esplanadas, nas barbearias e nos passeios de montraria a profissão das criaturas invejáveis que habitam a televisão.



Devo confessar que sou um fã do trabalho do Nuno Cardoso e dos excelentes profissionais com quem ele costuma trabalhar, actores incluído. Aqui diante de mim me assumo apreciador das peças que tem levado a cena e dos conseguimentos cénicos e cenográficos, esta Gaivota não escapa ao que no seu universo tem sido lei.



Sento-me na minha confortável cadeira 15 na fila E e, olhando em volta, apercebo-me das formas de vida circundante; tudo gente digníssima, apreciadora do melhor teatro. Sinto-me aconchegado pela cultura, esse tão sublime Apolo da humanidade. Penso para mim: lá fora os putos de skate procriando a subcultura americana e eu aqui cultivando com prazer as sete dimensões do meu espírito sem mexer uma palha.



Afinal qual é a lógica de festejar como suprema uma efeméride que se encontrou na génese de uma eternidade à qual se considera vergonhoso conceder qualquer referência explícita ou implícita? Não sei, será que os carbonários na altura de puxar o gatilho tiveram em conta que a envolver os insustentáveis interregnos de opressão azul ondeava um oceano de gloriosa governação monárquica? Provavelmente não.



Olho em volta e sobem-me as ruas, os becos, as obscuras ilhas da mais luminosa humanidade a naufragar na indiferença dos dias. No centro de tudo a requalificação da baixa, a abertura do salão nobre às gentes, ao comércio, à facturação ao metro quadrado. E digo para mim que tudo isto é admirável, porque, meu Deus!, sem o Annie no Rivoli também não haveria as corridas na Boavista e o red bull no Douro. Há pois que criar divertimentos para esses Paul Smiths e Austin Martins e Mónacos, e sugá-los até ao tutano, se não para aplicar tudo na saúde e na educação, que seria uma loucura, para rebentar a soma em luz com estrondo na noite de São João.



Apenas porque este sistema funciona assim não quer dizer que não existam sistemas a funcionar assado.



A questão plástica do cenário foi magistralmente ultrapassada recorrendo a um lago omnipresente, contudo, passado o primeiro impacto a novidade adormeceu e só voltou a surgir nos reflexos nocturnos.



Sempre me cativou a personagem de Kostia, aquele conceito elevado de arte, a forma como se entrega à fatalidade do amor que será talvez um decalcamento de como se submete ao desprezo da mãe. O romântico por excelência na linha de Werther.



Reparo em volta e conspiro para dentro o quanto seria providente procurar restabelecer a economia deste mundo por intermédio do livre comércio transformando-me no maior facilitador das tão desejadas viagens internas e externas, viscerais e geográficas, de todos os filhinhos destes papas e reinvestir dois terços dos lucros no que de facto faz falta a este país. Deixa-me feliz imaginar que daria um óptimo negociador de tropas de cavalo branco, Pirinéus de neve, café com leite, cavalinhos rampantes, muita fruta e outros.



A minha personagem preferida é, no entanto, Trigorin, o escritor famoso, o homem que manda embalsamar a gaivota morta por Kostia. No essencial é uma gralha que se sentindo irresistivelmente atraída por tudo o que brilha está condenada a destruir a beleza coleccionando-a em livros tal como mata os peixes retirando-os do seu ambiente natural. Ao contrário dos restantes, não é um hipócrita, tem consciência da sua condição e, sem se vitimizar, ainda que caído na indolência, não se concede mais dramatismo que a medida, o que lhe desce numa aura de manhã clara sobre o lago.



É por isto que eu digo que no cinco de Outubro próximo o que se vai festejar é a queda da monarquia, não a elevação da república.



Sempre me habitou em relação ao Porto o mais estranho dos sentimentos que alguma vez desenvolvi por uma cidade. Por si só, o seu caos arquitectónico, revela-se capaz de abrigar na perfeição a mais atormentada das almas e ao mesmo tempo falar ao coração da infância. Local onírico por excelência constitui um país das maravilhas acima da terra. E, no entanto, é indiscutivelmente feito de granito, escavado dos mais escorreitos valores, ao ponto de nos surgir uma imagem: a face de David.



Na cena final da peça, Nina, a actriz frustrada cujo sonho foi destruído pela entrega ao amor, diz: Eu sou a gaivota.



Portugal é a gaivota.






1 comentários:

r. disse...

...agora que o número de desempregados aumentou e há neste pais mais quem se dedique ao livre pensamento.
hehehe isto dava um estudo sociologico fantastico. ou um post dedicado somente a isto.

...no cinco de Outubro próximo o que se vai festejar é a queda da monarquia
hehehehehehehehe brinca brinca.. assim já tens o SIS a ler isto...

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