Crónica proléptica de uma época fabulosa

por Nuno A.


É um mistério. Quando o árbitro decidiu validar o golo que daria ao Benfica o louro de uma época fabulosa ainda ninguém adivinhava a importância do momento e, no entanto, poucos foram aqueles que não acharam justa a sentença. Quem estaria à espera de que seria somente um ponto a ditar o desfecho do campeonato e mais ainda de que o Benfica precisaria dele para vencer? A verdade, da qual apenas algumas semanas depois se veio a dar conta, precisamente por altura da entrega do troféu, é que desde muito cedo coexistia já nos espíritos uma espécie de consciência colectiva, dessas que comandam silenciosas e obscuramente anónimas, ainda que não se tenha por bom senso admiti-lo, o provir. O que esteve na génese dessa orientação magnética, porém, é de fácil compreensão e pela profundidade e extensão que atingiu encontrava-se desde logo tanto no futebol como fora dele.Em meados do ano de dois mil e nove deu-se o culminar do que muitos tinham vaticinado ou esperavam para a viragem do milénio. O que no futuro ficará registado como sendo o nascimento de uma nova idade das trevas, do qual somos nós testemunhas agnósticas, e que já havia revelado a sua face mais horrenda com o onze de Setembro do ano um, veio então dividir a factura por todos, desabando uma crise financeira internacional e configurando-se uma pandemia de gripe (apelidada) das aves. Como disseram, dizem e dirão muitos de muita coisa, mais tarde ou mais cedo, tudo é inevitável. E, de facto, pensando o infinito é difícil não concordar. Mas, para aqueles que não gostam de esquecer as suas responsabilidades, o caso mostrava-se bem mais particular. A bancarrota mundial como meta do caminho selvagem do capitalismo e a produção e desenvolvimento acelerado de doenças associados à criação massificada de animais para consumo humano não eram propriamente acontecimentos fortuitos ocorridos na nossa era por simples lei das probabilidades. Não eram, e isso estava à vista de todos. Mas, tal como é paradigma das ostras sempre que o indesejável lhe entra em casa, ao invés de se procurar compreender com vista a erradicar a ameaça, optou-se por amordaçá-la e atirá-la para a cave, dizendo que venha a próxima. E outras virão certamente, pelo menos enquanto esses cromossomas fizerem parte do código genético do sistema vigente. Para todos os efeitos eram mais alguns dos sintomas da tão falada crise ecológica e assim foram tratados, com branda ascese e paciente calculismo. É que, já antes dos degelos, das subidas do nível do mar, das secas, dos buracos do ozono, das desflorestações, toda a gente se havia convencido de que este mundo não está sob a guarda de um deus interventivo pelo que, quaisquer que fossem, os futuros dilúvios não teriam como fim novos recomeçares mas, pelo contrário até, apenas avantajados desafios. A fé na salvação continuava por isso relegada para outras realidades, como ao fim e ao cabo esteve toda a vida, sendo neste tempo já exemplos clássicos de subterfúgio os desportos colectivos, os psicotrópicos, as terapias e a televisão, como em outros mais ancestrais foram a literatura, a música e a religião. Desta feita, quando Luís Filipe Vieira, procurando legitimidade inequívoca, se submeteu a escrutínio para os órgãos administrativos do Sport Lisboa e Benfica apresentando Jesus como treinador da equipa principal de futebol naquelas que se cumpriram uma das mais concorridas eleições da história do clube da Luz, o resultado não poderia ser outro que a vitória avassaladora da sua lista, como era afinal mister da febre do tudo ou nada conceder. E havendo quem na altura estivesse aberto a estes ditames teria certamente escutado em qualidade digital os primeiros rumores de um despertar que, para além de usufruir da tensão de um desejo há muito reprimido, era, pela imposição das circunstâncias, mais um daqueles, ainda que circunspecto e mesquinho, efeitos colaterais do grito de esperança que ainda nos chegava, em eco pelas ondas, do outro lado do oceano, vindo do maravilhoso mundo novo de Barack Obama, a quem sobreviria ainda antes do final desse mesmo ano o Nobel da paz. Aquilo que seria uma brilhante pré-época de uma equipa renovada física e animicamente, alicerçada de contratações sonantes e jovens reforços, cravejada de rigor e disciplina táctica, tomaria forma inegável nas goleadas que se cumpriram sucessivas em jogos oficiais, dando então o sonho lugar ao murmúrio e este à lenda, daquele que se viria a cumprir de facto o melhor ataque da Europa. Com efeito, tal como havia prometido, Jesus logrou dobrar o rendimento dos jogadores; o que não é de todo de desprezar. Em primeiro porque estamos a falar de um clube que ainda na época anterior perdia apaticamente contra equipas de quarta e quinta linha como o Trofense e em segundo, mas não de somenos importância, porque se tem como pano de fundo um país que cultiva como um dos seus passatempos preferidos contrapor os líderes com as juras quebradas. Estávamos, em todo o caso, na presença de uma excepção que por ser já há muito esperada, dentro e fora do futebol, se revestia com o manto precioso do milagre, e este aspecto, ainda que dele não se pretenda mais pedestal que o curioso espectáculo do mundo, germinando subterrâneo à profundidade das raízes, encontra sempre caminho de fazer ressoar os nossos cristais. Para além de que toda a gente espera, de uma forma ou de outra, pelo despertar da bela adormecida, pelo regresso do rei, pela chegada do messias. E, se o trono havia sido usurpado pelo rival do norte, é certo que o soberano governante, legítimo pelas glórias do passado e apenas deposto por meio de astúcias manhas, advindo os ventos favoráveis da justiça e da verdade desportiva pelo julgamento do caso apito dourado, saberia receber novamente com dignidade a coroa que afinal tinha sido somente talhada para o seu crânio. O passado de pérfidas injustiças levantadas contra o seu sangue real estava lá, e chegado o sinal da boa estrela guia, faltava pois vencer no coliseu. Dificuldades que se sucederam mas que, não obstante, uma a uma foram caindo, como já antes haviam desmoronado os cepticismos relativos ao apuramento da selecção portuguesa para o mundial das africas, e chegados ao final cada uma delas, desde a mais considerável à mais insignificante, todas, sem excepção, se revelaram não mais que o penhor de uma vitória que se pretendia e assim se cumpriu abençoada pelo sacrifício. De facto, para que alcançassem as águias a sua época fabulosa foram colocados no seu caminho vários obstáculos e, mesmo estando a honra da sua némesis reservada aos arsenalistas de Braga que se revelaram o adversário mais respeitável que um rei pode desejar, a verdade é que outros atiradores furtivos lançaram mira sem no entanto lograr o alvo. Como resposta a um sucesso que, dentro das quatro linhas, parecia inevitável, surgiram, lançadas por todo tipo de rivalidades, suspeitas sobre alegadas influências sobre o concelho disciplinar da liga e a comissão da arbitragem. Mas como já assim havia o caso freeport atentado contra a imagem do primeiro-ministro José Sócrates sem sucesso, também no caso dos encarnados não passou isso de um boato sem outras consequências. O maior ataque porém estava reservado para a segunda volta do campeonato e, vindo abrir polémica sobre o uso de substâncias potenciadoras do rendimento que, embora não encontrando legislação actualizada no futebol, eram já sancionadas em outras modalidades, sendo disso exemplo recente o triste caso da desclassificação do vencedor da volta a Portugal em bicicleta Nuno Ribeiro, acabou por, de certa forma, ensombrar o semblante outrora imaculado do líder isolado do campeonato. Foi o primeiro ferro a cravar o glorioso e pelas contas que Deus fez outros dois se seguiriam. À margem do que era a ausência da justiça divina e o longo percurso da civil, esta última atulhada numa explícita incapacidade para se desembaraçar do seu profundo academismo, cumpria-se ainda assim polida uma ruela de tijolos amarelos sucessivamente entabulada pela imprensa desportiva com os mais espantosas efemérides. Alcançaria o espantalho o seu cérebro, o homem de lata o seu coração, o leonino a coragem e a menina dos sapatos vermelhos libertar a terra de Oz da terrível feiticeira? Se mais de cinco anos se esperou para que tivesse fim e escassas consequências o famigerado processo casa pia, verdadeira via dolorosa da justiça portuguesa, do qual apenas esta saiu mal vista e, ainda em desenvolvimento se encontrava a exploração do universo subterrâneo dos favorecimentos, pela mão de uma diligência judicial interposta a uma face oculta que ainda para mais beneficiava de uma morfologia tentacular, na liga sagres porém, faltando apenas algumas semanas para o encerramento da época, já ninguém esperava outro vencedor que não o Sport Lisboa e Benfica; nascendo tal vitória de uma justiça tão cega que acontecia celebração de uma fé inabalável. É claro que ainda não seria desta que os árbitros seriam poupados, longe ainda andarão os tempos de semelhante alforria, estando aliás a perseguição encetada contra o carácter destes juízes até na origem do segundo ferro cravado nas asas da águia. Com efeito, a constante suspeição de favorecimento no arbítrio das partidas, quando virtual, apenas pode prejudicar o líder na medida em que adverte para que, em caso de dúvida, nunca se favoreça a equipa que se encontra em vantagem. O que, no entanto, ainda veio revestir de maior particularidade a decisão tomada pelo árbitro naquele fatídico minuto oitenta. A coragem que o iluminou talvez nunca a venhamos a perceber, mas julgo que não estaremos muito afastados da verdade ao supor que assim o decidiu por acreditar que seria a melhor opção, melhor não no sentido de ser aquela que se encontrava mais de acordo com a verdade do acontecimento específico que avaliava, mas melhor no contexto de todas as circunstâncias envolvidas para além daquela em concreto, diríamos nós, quase como se adivinhasse que aquele golo, o ponto que valia, seria decisivo no desfecho de toda a época e logo assim no juízo final de uma equipa que, com todos as suas virtudes e defeitos, havia lutado com os recursos possíveis contra as dificuldades avassaladoras do imprevisto e não sendo um exemplo de integridade, mas também não uma cobardia de artimanhas, acontecia, para todos efeitos, aquela presença que desenganada de Deus e da ética absoluta não se furta à condição humana porque sabe, sente, que um dia, em uma qualquer situação, ainda terá a oportunidade de encarnar, mesmo que por breves instantes, a face do bem. O registo de vídeo, discutido durante a semana seguinte por todos os quadrantes da sociedade portuguesa, apenas viria novamente à memória no final da época, mas desta feita somente enquanto uma nostalgia irónica que trouxe em si o travo, ora doce, ora amargo da concretização. Já se havia deixado escapar os Maccain uma vez.

1 comentários:

rogério disse...

Uma força metódica investe-se em mim na procura de estabelecer um comentário lógico sobre a dissertação exposta. Não augorindo a terrível clarividência de um futuro fatídico para a excelsa criatura dragonal, posso imamente expor que algo se constringe às palavras proferidas.

A minha primeira reacção é: Não.
A segunda foi lendo e vendo o divertimento que por lá foi sendo escrito. Certo que com a colocação de todos os termos pesquisáveis, até é uma publicidade algo oculta, e o discurso conseguia fazer sentido, um adepto do dito era mesmo capaz de achar extraordinário, isto é, se compreendesse o que lá está escrito.

Creio que em termos de uma possível adaptação a uma coluna de jornal semanária, até teria o seu sucesso literário nas camadas mais eruditas com a dependência desportiva.

No final de tudo, o desvio ao que tem vindo a ser exposto na baía, é estranhamente interessante. E a prova que é mesmo possível de se escrever sobre qualquer coisa, nem precisa de público-alvo, ou precisa, tem de saber usar pelo menos a arte perdida do raciocínio.

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