Apontamento crítico sobre Deus, ou teoria prática do surgimento da moral religiosa

por Nuno A.

"Algo há em Deus que desacontece." Se desta frase tudo se entende, o povo esta bem e ninguém morreu; de tal forma que pode ser ignorado ou desacreditado com as mesmas consequências. Contudo porém se alguém, ao autor, dela requereu notas explicativas, demonstrado logo ficou que ela não é auto-suficiente. Caso este que se me depara no cruzamento sob a forma de dois destinos,

Primeiro: A frase não é inteligível, porque nada existe no mundo da lógica que a proteja, sendo portanto um equívoco;
Segundo: A frase é inteligível, mas desta feita nada acontecendo no mundo real que a prove, fica suspensa a sua aplicabilidade, sendo portanto uma teoria apenas.

Ainda que me pareça o primeiro destino mais verosímil, certamente menos enfadonho será procurar o segundo. Pelo que opto, como de resto sempre faço, por seguir sempre em frente contra o poste. Acontece que o caminho do poste apresenta três inconvenientes,

Primeiro: Não se sai do sítio;
Segundo: É doloroso;
Terceiro: É solitário.

Não obstante existe algo no poste que escapa às mentes menos contemplativas, pois é ele que separa os caminhos, que determina a glória e a desgraça, a virtude e a pérfida. E com tal autoridade o faz que apenas se pode deduzir que age de propósito seguro, ou por iniciativa própria, ou a mando senhorial. De facto se ele se encontra, havendo sido eu que determinei os destinos, por minha conta trabalha, segurando também os degraus que nele espetei. Ao uso de miradouro que serve, subo eu ignorando a vertigem, porque limpo o dia será o olhar profundo que me dará o desfecho de cada um dos caminhos. Isto tudo para dizer, meus internautas de maré baixa, que o que não faltam por aí são postes, e cada um mais alto que o outro. Sempre que nos são apresentadas hipóteses, teorias, ele há muitos caminhos, prós, contras, assim, assado, cada um tem as suas opiniões, et caetra; eles estão lá como seguranças de discoteca a barrar das ovelhinhas o caminho do lobo (leia-se arquitecto), a tapar dos patos (entenda-se espectadores) a visão dos bastidores. Mas sempre a mando, claro está, de quem está à porta, vestido de filósofo político, de mágico ilusionista, de cientista doutor, de artista artesão, a vender os bilhetes para suposta iluminação. Tantas são as ovelhinhas em fila para o sacrifício, que a até me parece mais eficiente e correcto passar a designar por rebanho, a massa homogénea que compra tais passagens, sem antes se questionar se o que lhe prometem ali embalsamado, enjaulado, descaracterizado, não era o que já antes tinham visto, saia acima ou abaixo, mais atrás, sem necessidade de reservas com antecedência, dinheiro a pronto e outros que tais. Pois não vêem seus carneiros amansados, que as respostas que esses iluminados da lâmpada (onde eu me incluo) lhes querem vender, a preço vergonhoso, o que já por aí andava à mão de semear, mesmo antes de saber o que era uma mão e o que era semear. Então não é simples tijolo empírico que desde o berço as temos ingerido, qual leite materno, sem nenhum efeito que se veja, ou sinta, ou toque, ou que raio vocês precisam para tal admitir. Subam a um poste qualquer e vejam o engano engendrado, ou juntem-se a mim e comprem uma motosserra, ou vão para o diabo em carreiro de pastor sem mim e sem a motosserra que tanto faz, pois se o deserto é o mesmo desde o princípio dos tempos. Vou eu ao menos a direito, e chegarei primeiro, sei que chegarei primeiro. Se ainda quiserem dar uma volta no carrossel, ou porque lhes abunda o tempo, ou porque lhes é perversamente saboroso ser ovelhinha, ou porque não percebem nada do que eu disse. Também eu tenho entradas e sobremesas. E que espécie de anfitrião seria se não presenteasse tão ilustres convidados com o tema: “Algo há em Deus que desacontece”, sob a forma de aperitivo.

O quê!? O senhor lá do fundo está a dizer que nunca ouviu coisa mais estúpida?! Mefistófeles? Sim, Senhor! Averigua se é um dito espirituoso, ou se está a falar sério o cavalheiro. Se for excesso de humores no fígado coloca tal tratante na rua, mas de forma cortês, ouviste?

Cá esta para que seja um anzol apelativo, o essencial é que seja uma afirmação deveras aguçada, ou seja, deve tratar de um tema sensível (neste caso Deus), mas contraposto com uma polémica aparentemente inocente induzida de uma forma subtil (desacontece). Não tenho nada contra os pensamentos viciados, desde que não sejam demasiado óbvios. Os paradoxos também não servem, porque desanimam de tal forma as lanzudas que elas acabam por tresmalhar.

Entra Mefistófeles, trazes alguma novidade? Trago sim sua Senhoria. Pois então?! De cima a alto, da esquerda para a direita, de trás para a frente, são duas as opiniões que os dividem. Porque esperas servo?! Enquanto uns de cabeça baixa remoem pensamentos sanguinários contra ti, outros, de papo levantado e dente arreganhado, ouvem já o clarinete dourado do triunfo. Estão então felizes esses ateus? Sim. E os dos cantos, não te parecem um bocado enfadados? É da minha intuição que se quede mais o Senhor com os fanáticos, esses que trazem nos olhos os gumes invisíveis. Não te apoquentes em demasia braço direito, que o jogo vai mudar.

Começando por eliminar o que não interessa, da frase, “Algo há em Deus que desacontece”, sobra que,

Primeiro: Deus existe necessariamente;
Segundo: Deus não existe necessariamente.

A primeira premissa é cabal, e não há nada a dizer. A segunda também. Características que lhes permitem sobreviverem, desde que separadas, sem acrescento de transtorno maior. Enquanto que consideradas juntas, porém, resultam em uma contradição indesmontavel, tal o exemplo da frase em causa. Mas, então, porque entrar em beco tão pronunciadamente sem saída? Acontece que, é na concretização da inexistência de Deus que residem os argumentos mais capazes da sua existência, e na materialização da sua existência que surgem os mais argutos trunfos da sua inexistência. Permitam-me que exemplifique. Antes de falarmos ou sequer pensarmos em Deus, já ele existe ou não existe, ou seja, o pensarmos nele não altera o seu estado. Desta forma quando discutimos a sua existência ou inexistência, o que de facto importa compreender é a sua essência, pois a ela se condicionam todos os seus atributos. E o que é que isto quer dizer? Olhem, quer dizer quer dizer que, se compreendermos Deus, saberemos automaticamente se ele existe ou não. Para aqueles que estão a pensar que isto é um absurdo, ou melhor, para aqueles que estão a julgar que compreensão de Deus implica necessariamente a sua existência, eu digo para agora pensarem em um unicórnio e tirarem a mesma conclusão falaciosa. Mas deixemo-nos de perseguir as lanzudas tresmalhadas. Aqui resume-se que, para avançarmos, apresenta-se vantajoso enumerar o que pensamos saber de Deus, de uma forma unânime, ignorando no imediato as fabulas, alegorias, historietas, e outras que tais superstições fantasiosas.

Deus é infinito;
Deus é eterno*.
* O tempo funde-se no espaço, equivalendo as duas premissas na prática a uma só, a primeira. Optando-se aqui pela colocação das duas, apenas para um melhor esclarecimento do leitor.

Destas duas premissas retira-se a Terceira,

Deus é tudo.

Se Deus é tudo, ou ele existe, ou de outra forma também nunca poderemos dizer que existe o que quer que seja. Logo, Deus existe. Não há mal, não há bem, e vamos para casa todos contentes. Mais espinhoso, porém, fica se duvidarmos da sua infinitude.

Mefistófeles? Sim, sua Alteza? Preciso que vás novamente em missão secreta. O que sua Graça desejar. Escolhe um cordeirinho ao teu gosto, torna-te próximo dele, partilha as suas ansiedades, e impinge-lhe a ideia almiscarada de, se algo existe em Deus que desacontece, que ele existe necessariamente, porque só o que existe pode desacontecer. Veneno por palavra sua Senhoria, até à última vírgula. Mefistófeles? Alteza! Lembra-te, esse tal cordeirinho que escolheres deverá pensar que a ideia nasceu na sua cabeça. Certamente sua Senhoria.

Mas ninguém está interessado em procurar um Deus desta natureza. O que de aqui para a frente, nos fará retirar dos seus atributos a infinitude, tornando necessário atribuir-lhe outras características, de forma a evitarmos ficar sem Deus, falo da omnipotência. Isto, porque a ideia chave desde o princípio dos tempos tem sido encontrar o criador, o início e o fim de tudo, o ente que não teve antes nem terá depois, porque só esse antes de todos os outros merecerá o título de Deus Ele Próprio. Situação que nos deixa a um palmo do abismo. Se não, vejamos, sendo Deus à partida finito, algo existiu simultaneamente que não teve origem em si, o que faria com que ele não fosse o criador primeiro ou único. No entanto, lembrando que ele é omnipotente, poderia ser desde sempre infinito e haver optado por ficar finito (é um raciocínio manhoso, mas a omnipotência tem destas coisas). Neste caso demos um grande passo (espero que não em falso) no sentido de alcançarmos a essência de Deus (pelo menos para a explicação de certos preconceitos nossos). Na medida em que surge o caminho da ética (escolha), inaugurando uma nova fase da nossa busca, fase essa que já toda a gente sabe onde vai dar e de onde apenas me resta dizer que para se conhecer Deus importa saber com precisão as suas escolhas. Desta situação podemos tirar duas elações práticas,

Primeira: Foi Deus quem separou as águas, pelo que só existe uma ética legítima: Deus.
Segunda: Assim sendo, a moral propriamente dita consiste em conhecer e escolher a parte do universo onde Deus quis permanecer, ou a outra, mas nunca as duas. Optar pelas duas é um estado amoral.

Caminhos de conhecimento e escolha…

Neste ponto em que nos encontramos olhamos para o lado e apercebemo-nos que não estamos sozinhos, pelo menos aparentemente. Existe toda uma cultura de Deus nestes termos, de onde se destacam as religiões/ideologias fundamentadas em textos sagrados. De importância histórica e cultural, são cinco as que importam conhecer: o Hinduísmo, o Budismo, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islão. Tendo que, falar dos textos sagrados do Hinduísmo e do Budismo, seria voltar a um Deus infinito, restam três (Tora, Bíblia e Alcorão) que são de facto duas escrituras (Bíblia e Alcorão) sagradas.

A Bíblia consiste em um compêndio formado por setenta e três livros escritos a muitas mãos, por inspiração divina, entre os séculos X a.C. e I d.C. O Alcorão…

Sobre tais escrituras não vou estender outras considerações, para além de que, havendo sido narradas pelo Próprio Deus Ele Mesmo, ou pela sua inspiração, ou por intermédio de seus servos, usufruíram como tal, todas elas, de canais privilegiados para manifestar Deus, sendo portanto, com toda a certeza, caminhos de salvação.

O nosso trilho pode, no entanto, continuar. Basta para tal considerar que a escolha de Deus (infinito>finito) deixou marcas no universo. O que, contudo, não nos facilitará o trabalho. De forma a orientar tal busca será útil ir ao início: a escolha de Deus. Opção implica consciência, o que nos revela, por si só, o espaço que trilhamos. Assumindo que só no plano do pensamento poderemos, então, encontrar a procurada linha limitadora, verificamos que o homem se encontra em uma situação privilegiada, relativamente aos restantes seres vivos (conhecidos), pelo que será uma ajuda situar o homem no plano da criação. No princípio, apenas existia Deus infinito, depois dá-se a divisão e ele torna-se finito, depois dá-se o aparecimento de um novo ser com consciência: o homem. Assim sendo e acreditando que as coisas não aconteceram por inspiração do simples acaso, a ideia fundamental será que o homem, quer queira quer não, e essencialmente porque faz parte de uma natureza, a sua, a que não pode renunciar, vive condenado ao livre arbítrio (seja ele absoluto ou não, para aqui não interessam tais considerações metafísicas), pelo que nos devemos focar nas escolhas que fazemos. Alerto, não obstante, para a dificuldade que advém da procura da escolha recta. Neste aspecto, considero que existem duas alternativas eficazes,

Primeira: Adquirir o conhecimento infinito, o único que pode proporcionar a visão global e como tal a escolha mais vantajosa.
Segunda: Menos digno, mais oportunista, menos seguro, mas talvez mais realista seja, contudo, desistir de obter tal conhecimento e procurar copiar as escolhas de Deus, atendendo que ele possuiu o conhecimento do todo.

Para quem quiser seguir pelo caminho primeiro, não há nada a dizer. Desejo boa sorte e paciência, enfim felicidades.
Relativamente ao segundo, importa deixar registado que existem, na Bíblia, para quem estiver interessado, relatos das escolhas de Deus em circunstâncias humanas (ver Evangelhos).


Mefistófeles?! Estou aqui sua Graça. Elucida-me. Mesmo ao pé si sua Senhoria. À direita ou à esquerda? À direita. Ah! Sim, claro. Diz-me, como correu? De acordo com o planeado sua Senhoria. Elucida-me. Os que antes enchiam o papo, estão agora vermelhos, os que antes remoíam iras medonhas, levam agora os olhos irónicos. Muito bem servo, e não te esqueças, o segredo está em não deixa-los desanimar. Agora, chega à minha esquerda para que eu te diga o que deves fazer a seguir.

1 comentários:

rogério disse...

é que nem faço comentários.

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