A entrevista*

por Nuno A.


Dr. Moobrugger, boa tarde. Mais uma vez obrigado pela sua disponibilidade e simpatia.

Boa tarde. Não tem de quê. Por favor trate-me por Ulrich.

Muito bem, Ulrich. Antes de mais entendo ser pertinente, dado o facto de ser pouco conhecido em Portugal, começar por localizar a sua personalidade. Como se definiria a si próprio?

Nasci em Klagenfurt, na Austria, no rescaldo da segunda guerra mundial, fruto de um caso extraconjugal entre um oficial da Wehrmacht e uma enfermeira Vienense. Frequentei a instrução regular até à morte da minha mãe num acidente de viação, a partir daí fui acolhido pelo meu avô paterno que me levou para Neu-Ulm, na Baviera, onde frequentei um colégio de jesuítas até completar dezoito anos. Depois estudei um pouco por todo o mundo. Acabei a minha graduação de História natural e filosofia em Munich, tirei uma pós-graduação em epistemologia em Paris e fui convidado para dar aulas em Bolonha, onde conclui em paralelo o meu doutoramento com a tese o historicismo científico em Maquiavel. Participando de vários projectos internacionais, viajei um pouco por todo o mundo em conferências e seminários sobre o futuro sociológico da Europa. Há cerca de dez anos retirei-me do ensino para me dedicar exclusivamente à investigação e à escrita.

Eu tinha-lhe pedido que nos contasse a si, não a história da sua vida, no entanto, já que se predispôs a narrar a sua biografia vou aproveitar para lhe colocar uma questão sobre ela. Como experienciou a guerra fria?

Sabe, é bom que puxe esse tema porque geralmente não tenho oportunidade para falar dessa realidade políticosociocultural que deformou o mundo e de forma especial a Europa. O que se passou naquela altura, recuperando um pouco aquilo que imaginamos ter ocorrido durante a reforma protestante, vem descrito na Bíblia sob o título a parábola do filho pródigo –

É da opinião que a Bíblia para além de ser uma síntese da sabedoria ocidental é também profética?

Bem, a sabedoria de certa forma é um dom profético.

Na sua opinião qual foi o maior pecado do bloco de leste?

A repressão.

No bloco de oeste não existia repressão?

Existia e existe, mas trata-se de uma censura positiva.

Explique-se.

É muito simples. A censura negativa exerce-se pela negação de direitos, enquanto a positiva se baseia no enfraquecimento dos mesmos.

A primeira ataca as pessoas ao passo que a segunda ataca as leis.

Precisamente.

Acha que ganhou o melhor sistema?

Eu sou da opinião que não ganhou sistema algum. O capitalismo é simplesmente uma designação infeliz para a ausência de modelo, isto é, para apelidar aquilo que nós conhecemos como as leis naturais.

Ainda assim que conclusões pode tirar da presente crise mundial?

Permita-me que rectifique, a crise não é mundial mas globalizante.

Qual é a diferença?

Não é diferença, trata-se de reconhecer que existem crises e “crises”. Na actualidade apenas são contabilizadas as crises do sistema vigente, as suas fragilidades, no entanto, existem outras, talvez mais graves ainda, que por não lhe dizerem respeito passam despercebidas.

Tendo em conta que você utilizou a palavra sistema para dar conta de uma certa organização que domina o mundo eu passava a perguntar: Qual acha ser o objectivo desse sistema?

O objectivo de cada sistema, geralmente, é o próprio sistema, ou seja e utilizando o chavão darwinista, a sua própria sobrevivência.

Daí o acusarem de ser um sistema amoral…

Bom, a moral é por natureza um estado relativo.

Essa não é a desculpa dos perversos?

Também pode ser, mas para compreender a moral é necessário ter em conta que ela tem sempre origem numa perspectiva, numa tendência, num interesse.

Está de acordo com aqueles que dizem que esta crise teve e tem origem numa crise de valores?

Todos os valores que não estão em vigor têm motivos para desprezar aqueles que são valorizados.

Trata-se então de mais uma luta de ideologias ou, nas suas palavras, de interesses?

E não é?

Concretize.

Já se perguntou alguma vez porque as pessoas procuram ideologias?

Imagino que seja para construir um mundo melhor.

Não, esse poderá ser quanto muito o objectivo. A fonte de todas as lutas ideológicas tem que ver com o desconforto, e o motivo pelo qual as pessoas o sentem não está, na maior parte das vezes, tão intimamente relacionado com esse altruísmo quanto seria desejavel.

É a súmula daqueles que afirmam vivermos numa sociedade individualista.

Não, de certa forma a sociedade é sempre individualista, por outro lado, o que esses críticos pretendem dizer é que não se encontra em vigor o tipo de corporativismo que eles anseiam.

É tudo uma questão de perspectiva.

Eu diria, ao invés de perspectiva, palpite.

A sorte também desempenha o seu papel?

O que é a sorte?

Digam-me você.

Bem, eu acho que o conceito que melhor serve essa palavra neste contexto é aquele que se refere a um estado ou acontecimento que não conhecendo uma explicação ou história rastreavel vai de encontro a uma esperança ou desejo à partida tido como improvável. O que, repare, é o mesmo que dizer que representa a crença do homem no destino, em Deus se quisermos.

Acredita em Deus?

Alguma coisa será.

E de uma forma tradicional?

Dentro de determinados parâmetros.

Como assim?

Não há dúvida que a sua presença tem sido um marco imprescindível para toda a humanidade, o valor do seu conceito é inegável, acompanhou e acompanhará sempre o homem. No entanto, o seu acontecimento, para além de se encontrar confinado a uma postura muito própria, parece ser indiferente a qualquer tipo de interpolação, o que resulta em algumas apropriações pouco desejáveis, algumas delas muito infelizes por sinal. No entanto, o ponto essencial no que respeita a Deus prende-se com o fundamento da fé, isto é, com o carácter da esperança proporcionada. Como é obvio não me vou pôr para aqui a narrar o que está escrito na Bíblia e o que dela foi retirado por séculos de exegese, mas acredito que seja fácil de compreender para os outros como é para mim que a face de Deus se tem tornado cada vez mais distante, ele tem passado continuamente de um pedestal salvador para uma tutela crispada. Daí que eu tenha afirmado no meu livro “Sights for a Miracle” que hoje em dia talvez seja mais útil acreditar que a nossa presença na terra se deve a uma intervenção alienígena. Esta, de facto, seria uma crença que para além de nos fornecer uma esperança intermédia mais plausível de vir a ser corroborada, abriria novas perspectivas ao desenvolvimento do homem.

Dessa forma não se cairia no puro cinismo?

Não, quanto muito seria cair num novo cinismo.

Eu preparava-me para acrescentar arbitrário.

Arbitrário pode-se dizer de muita coisa, mas não, não creio que seja o caso, de todo. Para entender isto é necessário pensar no caminho já percorrido pela humanidade e naquele que falta percorrer. A maior esperança tem sido sempre o encontro, e no caso do homem moderno o contacto com novas formas de vida inteligente revelar-se-ia um marco.

E essa procura não acabaria necessáriamente por se transformar em mais um subterfúgio, um saco sem fundo?

Os subterfugios também possuem a sua utilidade, assim como o mistério.

Nesse seu livro que já referiu, “Sights for a Miracle”, surge uma passagem em que diz qualquer coisa como “o mistério é o motor da evolução” e, mais adiante, que “perdê-lo seria a maior desgraça da humanidade”.

Sim, ainda não reparou que é ele que mantem todas as peças juntas, e não deixa que nada seja esquecido.

Existe porque é útil?

Não, eu acho que é precisamente o contrário.



(Continuará, um dia, talvez)



*Enxerto de uma entrevista exclusiva amavelmente cedida pelo antropólogo Ulrich Moosbrugger à Baia dos Porcos

Tradução, notas e publicação por Nuno A.


2 comentários:

rogério disse...

a ideia está interessante. a ideia das entrevistas. a entrevista em si foca alguns aspectos possiveis de ser explorados e outros que poderiam ser menos explorados. num todo eu diria positivo, mas nao me consigo decidir se a entrevista é verdadeira ou nao. porque me parece que és sempre tu a falar...

Nuno A. disse...

estavas à espera de quê? fui eu que traduzi.

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