Que me abandonem as ninfas, que me deixem as musas, calem-se as liras, baixem-se as trombetas, fechem-se as fontes, interrompam-se os rios, esvaziem-se os mares, levem daqui as mulheres, eu quero estar só.
"I know not what tomorrow will bring" Pessoa, na hora da morte
O que eu vejo é um sumo sacerdote na túnica imaculada do seu lençol de núpcias. Habitando uma clareira incólume, arvora o segredo do ritual obscuro a que procede desconfiando como testemunhas os melros debicadores das violáceas flores e os ouriços-cacheiros aurigas das evalinas maças. Canta um zéfiro de leste e tal celebrante derrama sobre a pedra do sacrifício o incenso lunar do marfim contra o aroma térreo das raízes. Arde perto uma exígua rusga de galhos caídos e, burilando no seu crepitar, um negro caldeirão fabrica a densa bruma condensadora da treva que nos engole.
“Alles ist gut” Kant, na hora da morte
Estou sentado na pedra angular e doem-me as costas porque ela não tem encosto. De frente o sacerdote de braços elevados fita a altura das estrelas. As palavras proferidas do remoto da sua voz gutural sabendo-me a latim convidam à inocente devoção. Per vias rectas introibo ad altare Dei. Uma vez por outra solicita o meu reparo. Levanto-me e inclino ligeiramente a cabeça ao que ele entenderá por vénia. Pergunta-me se estou preparado. O relento amantíssimo da expectativa dispensa palavras.
"Levem daqui as mulheres" Sócrates, na hora da morte
Procedendo ao que se tem previsto, de acordo com as duas possíveis vias, o desfecho revelar-se-á igualmente célere e impiedoso. É chegada a hora do destino e o reverendo já munido do quarto crescente suspenso na linguagem do aço aguarda a eventualidade do eclipse.
“Merh licht” Goethe, na hora da morte
Lembro agora os que me antecederam. Coalhado nas ranhuras do granito, como um enorme líquen o sangue estende-se pelo declive até às verduras do solo. Num gesto inspirado de ingenuidade baixo a face ao frio da pedra, respiro a doçura do carmim. Tenho sede. O carrasco não possui vinagre, o futuro é incerto. A misericórdia parece resistir no canto dos seus olhos. Ele, porém, passando a sua mão esquerda em afago pelo meu cabelo limita-se a sussurrar uma esperança etérea.
“Terminou a morte – disse. – A morte não existe” Ilich, na hora da morte
Procuro imaginar os que me partilham o sangue na expectativa da sorte que me abençoará. Como acharei os seus braços após a desejada vitória, perante o meu mais provável fracasso. Neste clamor mudo é-me devolvido o silêncio ancestral. O sacerdote prolonga-se numa espera já incrédula. Nem uma ave no céu anuncia a obstrução do satélite. Em pouco tardar ser-me-á para sempre negado o desfecho que, por mim idealizado nos escassos que me foram exemplo, sempre me almejou a luz. À miséria dos meus não sobrevirá a salvação do dote merecido aos que auferem a honra de perder um filial para o sacrifício dos astros. Percebo com amargura pelos primeiros raios, a manhã próxima, que sou apenas mais um. Até ao final da noite gume algum me libertará o grito suspenso na garganta.
“Consummatum est” Cristo, na hora da morte
Demais vacinado para os da minha sina, o sacerdote pede-me imediatamente que desaperte o cinto e desça as calças. Fecho os olhos ao gesto brusco que me acrescenta ao rebanho. No fim estende-me a toalha já manchada na limpeza da adaga. Não temas filho, a circuncisão também não é uma desonra.
2 comentários:
"Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: "Morrer, que me importa? (...) O diabo é deixar de viver."
Rubén Alves ;)
precisava de uma introdução. começar o texto logo em cima da narração sem se saber do que está a falar e com um discurso hiper-complexo, faz o leitor chegar ao fim, rir 2 segundos com o trocadilho da adaga e dizer que não percebeu o que está escrito.
é engraçado que eu já deve ter dito exactamente o mesmo de outros posts.. é preciso escrever para os leitores perceberem. de nada serve expor lindas palavras enfeitadas por glicinias se ninguem lhes sorve o nectar...
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