O Mito da Vida: Parte I - A pergunta

por Nuno A.


Foi Camus após a segunda guerra mundial que colocou, segundo o próprio, a pergunta essencial da filosofia e, por vias de facto, da existência humana também. No seu “Mito de Sísifo” perguntou se a vida merecia ou não ser vivida e apontou como mobili do problema o absurdo, o divórcio entre o homem e o mundo, entre a ânsia de respostas do primeiro e a mudez enigmática do segundo.
Não chegou contudo a fechá-la de uma maneira formal, quer dizer, chegou… considerando que o facto de não ter cometido suicídio não constitui prova irrefutável de que a sua resposta seria positiva ou negativa, apenas podemos partir do princípio que terá deixado essa solução ao discernimento pessoal (livre-arbítrio); o que não significa que, fixadas as circunstâncias, não possa o problema ter uma resolução objectiva, isto é, que buscando a hipotética escolha em princípios bem estabelecidos não se possa encontrar termos reais que sejam raiz da equação.
Camus, porém, evoluiu a procura de resposta no sentido de achar argumentos que fundamentassem a sua concepção de homem absurdo para a legitimação ontológica da sua postura no mundo; não procurando tanto encontrar motivos para viver como antes continuar a existir na ausência deles. O que constitui em si um problema fundamentalmente ético. Vejamos que nada disto tem que ver com a vontade de morrer ou viver, bem vistas as coisas não é o encontro do argumento lógico que fornece ao homem o sentido de viver, tal como não é a falta do mesmo que o faz decidir-se pela morte. Tendo em conta que estes factores são dispensáveis na orientação da escolha, percebemos que ela se alicerça em predisposições mais simples; é a paixão que orienta a razão, que a concretiza. O homem, ainda que possuindo, à semelhança de outros animais, o instinto de sobrevivência, não é avesso à ideia de martírio… Mas apenas uma emoção vence outra emoção, isto é, a paixão não se deixa vencer pela razão, uma vez que não são interconvertiveis: a paixão não substitui a razão e a razão não substitui a paixão. Das duas, porém, apenas esta tem ordem para carregar no gatilho. Digamos que a natureza coloca à guarda do instinto, fornecendo-lhe uma maioria relativa, o poder de decisão em situações extremas, quando se encontra em causa a integridade física. Enquanto que, para a vivência do quotidiano a emoção é uma substância mais ou menos consistente, mas que ainda assim apresenta uma certa flexibilidade, para que possa, enfim, a razão ter os seus momentos criativos de grande utilidade para a evolução do conhecimento, em circunstancias limite, contudo, como que se petrifica diminuindo a liberdade da razão. Claro que esta aproximação é bastante arcaica, uma vez que admite poderem ser tratadas separadamente a emoção e a razão, quando, de facto, o mais provável é serem elas indissociáveis, numa aproximação mais realista ao centro de comando que é o sistema nervoso, contando também com o contributo de outras funções biológicas.
Desta forma, a questão colocada por Camus no início do seu “Mito de Sísifo” acaba por não ser tão fundamental como poderia parecer à primeira vista, na medida em que as únicas respostas que pode obter não têm necessariamente que ver com a consequência que implicariam. Ou por outras palavras, a pergunta é fundamental, a reposta… nem por isso.
Tomando, contudo, o caminho posteriormente seguido pelo autor entramos no campo da ética e da fundamentação moral do homem que não encontra motivos para viver ou morrer. E, com efeito, este sim é um problema ético de primeira água. A instauração de uma moral, de uma conduta num percurso desprovido de sinalética, de sentido, enfim, num deserto em que não existe a imposição natural de uma direcção em detrimento de outras, encontrando-se elas, para mais, no mesmo patamar de conquista lógica, apresenta-se como sendo um desafio avassalador.


A possibilidade de uma ética amoral

São precisos dois pontos para que se possa obter uma linha. Um de partida e outro, distinto, de chegada determinam de onde começamos e onde vamos acabar. O caminho que se cumpre entre os dois, no entanto, pode assumir diferentes formas. Digamos que na vida esses pontos são respectivamente o nascimento e a morte. Para estarmos vivos sabemos que nascemos, estando vivos sabemos que vamos morrer. O percurso entre a vida e a morte, porém, não nos aparece, à partida, definido. Deixando de fora a problemática do livre-arbítrio e da causalidade, assumindo portanto, da visão mais empírica que a escolha do homem é efectiva e livre; resulta a legitimidade da responsabilização do homem. Isto é, o homem pode ser entendido como responsável pelos seus actos, o que não é o mesmo que dizer que exista direito de procurar a consequência dessa responsabilidade através do castigo. A formulação e aplicação de leis punitivas surge apenas das construções estratégicas que não me cabem discutir. Aqui, por outro lado, importa compreender que, mesmo sendo o homem responsável, a respectiva consequência surge normalmente dos seus actos, todas as outras consequências que possam ser adicionadas a posteriori por via de julgamento são artificiais, ou melhor, não são resultado necessário dos actos dos indivíduos. O que origina as conhecidas ambiguidades da justiça. Mas quando se fala de preconceitos morais não se trata de punição, não se deve confundir leis com penitências. As leis pretendem, ou deveriam pretender, apenas proteger um dado modelo ideológico. Acontece que todos os modelos ideológicos vivem somente dentro das pessoas e por vezes parece ser necessário até ir contra o próprio modelo para que as pessoas o não deixem morrer; porque também tem o povo sede de justiça. Aliás, o que é a punição senão uma espécie de lenitivo a essa sede?
Mas o que pode fazer o homem no plano ético sem a moral? Falo de uma ética na sua assumpção mais fundamental, livre de teorizações, historificações, mistificações, etc. A ética da verdade interior, da sinceridade. Que caminho pode tomar o homem para se encontrar, assim que renegue todas as leis? Ou será que as renegando por si só é suficiente? Pelos dados disponíveis, sabemos que o caminho não se encontra completo sem a morte (sendo ela ou não o fim), a realidade é que o homem não se conhece plenamente sem a experimentar. Sendo assim que caminho deve ele seguir de forma a que a sua ética sem leis se cumpra? A inexistência de preceitos dita que nada pode estar estipulado a priori, pelo que o homem amoral não pode estar protegido para eventualidades, ou melhor, a sua preparação deve vir apenas de si e não de bulas e salvo-condutos. Pois ele depende apenas de si tal como o seu fim apenas a si pertence. Mas não sejamos radicais nos juízos, o espírito selvagem nada tem que ver, como muitas vezes se pretende, com o anarquismo social. A busca do fim é voltada para dentro e não de companhia, muito menos militância; o que também não implica total isolamento. Pretende-se apenas separar as águas, o que é de procura íntima só pode ser vivido na intimidade, e o que é de relação só pode ser vivido em comunhão. Em que circunstância se pode oferecer a nossa verdade interior como idealismo para as massas , sem entrarmos em desonestidade por negligência, pretendendo que o caminho pessoal seja também colectivo?
Pelo contrário, exige a comunhão respeito pelas intimidades dando a mesma preponderância a todos. As quais, de qualquer forma, também não são chamadas a assumir qualquer papel na sociedade, o fim da comunidade é a própria comunidade e não o indivíduo. Ora, se a vida colectiva requer preceitos, costumes, leis… o mesmo não é verdade para a vida individual, a vida que apenas acontece no interior do homem e em mais nenhum lugar.
Mas por que motivo – podem perguntar alguns – não pode a intervenção exterior ser também caminho íntimo? A estes, a resposta que proponho é a seguinte: O carácter de um caminho determina-se pela sua essência, pelo material do qual é feito. O homem precisa de ter a humildade de assumir que não se constitui mais que o seu próprio corpo e que o seu íntimo não é mais que a sua consciência.
A ética do indivíduo amoral consiste pois em saber dar primazia ao conhecimento íntimo relativamente à comunhão social. E o conhecimento íntimo não é mais que a sua sinceridade.

1 comentários:

rogério disse...

ok duas coisas:
coisa 1 . “A possibilidade de uma ética amoral” : me parece que anda aqui um lobinho a querer marchar mémés
coisa 2 . “estratégicas que não me cabem discutir.” : e ele mete mais um velcro a selar a lã.
coisa 3. “lenitivo” : nunca utilizei esta palavra em nada, um diz destes…

coisa 4. “o fim da comunidade é a própria comunidade e não o indivíduo.” : mas ainda não acaba aqui:
“Ora, se a vida colectiva requer preceitos, costumes, leis… o mesmo não é verdade para a vida individual, a vida que apenas acontece no interior do homem e em mais nenhum lugar.” : ele a definir individualidade segundos os seus preceitos… e continua:

“Mas por que motivo – podem perguntar alguns – não pode a intervenção exterior ser também caminho íntimo? A estes, a resposta que proponho é a seguinte: O carácter de um caminho determina-se pela sua essência, pelo material do qual é feito.” : aqui até me parecia tudo muito lúcido, só que depois vem o trago de um mais preceito reescrito:

“O homem precisa de ter a humildade de assumir que não se constitui mais que o seu próprio corpo e que o seu íntimo não é mais que a sua consciência.” : a pena que tenho de quem tem de desenrolar este nó… - para dispor esta primeira parte exprime:

“A ética do indivíduo amoral consiste pois em saber dar primazia ao conhecimento íntimo relativamente à comunhão social. -(de acordo mestre)- E o conhecimento íntimo não é mais que a sua sinceridade.” : esta brincadeira da sinceridade parece-me muito cor de rosa, mas quem sou eu para o negar quando profiro impropérios namoradeira a cada vislumbrar de musas íntimas.

coisa divertida: “São precisos dois pontos para que se possa obter uma linha.” (na verdade é só preciso um investido de movimento.)

é claro que agora se fica à espera que das próximas 3 partes. E rezasse que para quando o leitor (se é que ainda não o fez) ler a sina de Sísifo não se sinta compelido a fazer comparações. Ou sinta. Nesse dia já poderei comentar este poste de modo menos ambíguo.

Creio que já mencionei um dia destes que, troco diarreias metafísicas por qualquer naco de rocha numa praia olvidada nos confins do mundo. – o ainda não chegou a minha hora ganha raízes e sente os prazeres latentes da indolência…

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