Discurso ao provir

por Nuno A.

Muitos são aqueles que prevendo o fim associam o seu nome a algo maior quer eles próprios ou até mesmo que desejando a beleza se procuram elevar neles mesmos à glória.
Nada existe maior que eu.
Mas não é por isso que me ajoelharei a adorar a Deus, ou ao quinto império, ou à humanidade, em orgulho de me achar o verdadeiro.
Sou tudo o que há.
E assim sendo que reino?
que trono?
que súbditos?
que verdade?
Para quê representar perante mim o profeta, o amante, o louco?
Vaguear nestas terras que me pertencem disfarçado de romeiro em busca da donzela humilde ou do homem bom, da pedra filosofante, da água eterna?
Conquistar as cidades aos deuses que eu próprio entronei e destituí-los e novamente dar-lhes o poder e outra vez derrubá-los?
Ver o fim de tudo e escolher o caminho mais longo para regressar?
Perder-me na memória?
Aspirar ao esquecimento?
Adormecer com o vinho e ao dia ser ora o soberano ora o criador de porcos?
Maldizer-me no espelho e contra mim mesmo revoltar-me no mundo deitando fogo à realidade?
Escavar buracos na terra e enchê-los de homens segundo a minha condição?
Não.
Andarei por aí irredutivel como tudo quando pode ser, sem pousio firme ou instante de consolado entendimento.
E,
como estou,
desaparecer.
Se tudo é não existir.

A carta

por Nuno A.

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Carta do Marquês de Pombal ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Inglaterra: por causa de terem sido queimados debaixo das nossas fortalezas da costa do Algarve, alguns navios franceses, BN, H.G. 25068 V
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Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Rogo a V. Exa. Que me não faça lembrar as condescendências que o nosso Gabinete tem tido para com o seu. Elas são tais, que eu não sei se alguma Potência as haja tido semelhante para com outra. É justo que este ascendente acabe por uma vez, e que Portugal faça ver a toda a Europa que tem sacudido o jugo de uma dominação estrangeira. Portugal não pode provar isto melhor que obrigando o vosso Governo a dar-lhe uma satisfação, que por nenhum direito lhe deve negar. A França olharia para Portugal como para um Estado em fraqueza, se não pudesse obrigar-vos a dar razão da ofensa que lhe fizestes, vendo queimar defronte dos nossos portos, navios que deveriam ter ali toda a segurança.
Vós não fazieis ainda figura alguma na Europa, quando a nossa Potência era a mais respeitável. A vossa ilha não formava mais do que um ponto na Carta ao mesmo tempo que Portugal a enchia com o seu nome. Nós dominávamos a Ásia, África e América, quando vós domináveis sómente em uma ilha da Europa. A vossa Potência era do número daquelas que não podiam aspirar a mais do que à segunda ordem; e pelos meios que nós vos temos dado, a terdes elevado à primeira. Esta impotência física vos inabilitava para estenderdes os vossos domínios fora da vossa ilha; porque, para fazer conquistas, precisáveis dum grande exército; mas para ter um grande exército é necessário ter meios para lhe pagar, e vós não o tínheis. A moeda de contado vos faltava. Os que calcularam sobre as vossas riquezas, acharam que não tínheis com que sustentar seis regimentos. O mesmo mar, que pode olhar-se como vosso elemento, não vos oferecia maiores vantagens; com muito custo poderíeis apenas equipar vinte navios de guerra.
Há cincoenta anos, porém, a esta parte, tendes tirado de Portugal mais de mil e quinhentos milhões, soma enorme de que a História não fornece exemplo que nação alguma do mundo tenha enriquecido a outra de um modo semelhante. O modo de adquirirdes estes tesouros vos foi ainda mais vantajoso do que os tesouros mesmos. Pelas artes é que a Inglaterra consegui fazer-se senhora das nossas minas. Ela nos despeja regularmente todos os anos do seu produto. Passado um mês depois da chegada das nossas frotas do Brasil, não fica em Portugal uma só peça de oiro; tudo tem passado para aumentar a sua riqueza numerária. A maior parte dos pagamentos do Banco são feitos com o nosso oiro.
Por uma estupidez de que também não há exemplo na História Universal do mundo económico, nós vos demos a faculdade de nos vestirdes e de nos fornecerdes todos os objectos de luxo, que não é pouco considerável. Nós damos de que viver a quinhentos mil vassalos do rei Jorge; população esta que subsiste à nossa custa na capital da Inglaterra. Os vossos campos são quem nos sustenta. Vós substituístes os vossos trabalhos aos nossos; se antigamente vos fornecíamos o trigo, vós sois hoje quem no-lo fornece. Vós tendes roteado os vossos campos, nós deixamos os nossos em baldios.
Mas se vos temos elevado a esse ponto de grandeza, na nossa mão está o precipitar-vos no nada de que vos arrancámos. Nós podemos melhor passar sem vós, do que vós sem nós. Basta uma só lei para destruir a vossa Potência, ou pelo menos para enfraquecer o vosso Império. Não precisamos mais do que proibir, com pena de morte, a saída do nosso oiro, para ele não sair jamais. Talvez respondereis a isto que apesar da proibição, sairá mesmo do modo como sempre tem saído, porque os vossos navios de guerra têm o privilégio de não serem visitados na sua partida e em consequência do dito privilégio transportarão todo o nosso oiro; mas não vos enganeis com isto. Eu fiz romper vivo o duque de Aveiro por ter atentado contra a vida do rei, e poderei muito bem fazer enforcar um dos vossos capitães por ter roubado a sua efígie em desprezo da lei
Há tempos em que nas monarquias um só homem pode muito. Vós não ignorais que Cromwel, na qualidade de Protector da República inglesa, fez cortar a cabeça a Pantaleão de Sá, irmão de João Rodrigues de Sá, embaixador de Portugal na Inglaterra, por se ter prestado a um tumulto; e eu, sem ser Cromwel, estou em estado de imitar o seu exemplo na qualidade de Ministro Protector de Portugal.
Fazei, por tanto, o que deveis, se não quereis que eu faça o que posso. Que seria da Grã-Bretanha se por uma vez lhe cortasse este manancial das riquezas da América? Como pagaria à imensa tropa de terra e a grande armada do mar? Como daria ela ao seu soberano os meios de viver com o esplendor dum grande rei? Donde tiraria os grandes subsídios que paga às Potências estrangeiras para escorar e firmar a sua? Como viveria um milhão de vassalos ingleses, se se acabasse para sempre a mão de obra de que tiram o seu sustento? Em que estado de probreza não cairia todo o reino, se este único recurso lhe faltasse? Basta que Portugal regeite os seus grãos (quero dizer, o seu trigo), para que metade da Inglaterra morra de fome.
Direis que não muda com facilidade a ordem das coisas, e que um sistema há muito estabelecido não pode transtornar-se em um momento. Dizeis muito bem; mas eu direi ainda melhor. O rodar do tempo é que pode trazer esta reforma. Eu estabelecerei um plano preliminar de comércio, que se encaminhará ao mesmo objecto.
Há muito tempo que a França nos estende os braços para que recebamos as suas manufacturas de lã. Na nossa mão está aceitarmos as suas ofertas, o que sem dúvida aniquilará as vossas. A Berbéria, abundante de trigos, os fornece a melhor mercado que os vossos. Então vereis com a maior dor um dos principais ramos da vossa marinha ficar inteiramente extinto. Vós sois muito versados no Ministério, e não ignorais que isto é um viveiro de oficiais marinheiros de que a marinha real se serve em tempo de guerra; e com isto é que tendes elevado a vossa Potência.
A satisfação que vos pedimos é conforme ao direito das gentes. Todos os dias acontece haver oficiais do mar que, por zelo ou inconsideração, fazem aquilo que não devem. Ao Governo cumpre puni-los e fazer a reparação ao Estado que eles ofenderam. Todos sabem que semelhantes reparações o não tornam desprezível. A nação que se presta ao que é justo, adquire a melhor opinião; e da opinião é que depende sempre a potência do Estado.
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Marquês de Pombal
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Conde de Oeiras

Rocket man

por Nuno A.

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I think it's gonna be a long long time*
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Parecia-me uma eternidade, um lugar impossível de alcançar por mais anos-luz que viajasse, esse sítio da última vez que estive comigo. No entanto, o universo, o infinito também possui o seu ciclo e no inesperado das leis cósmicas as distâncias que outrora se assemelhavam abismais tornam-se num repente, e por mão das mais improváveis realidades, banais insignificâncias de metros. Assim foi, uma troca olhares, uma breve informação de luz retida em menos de um segundo despertou-me e o que eu achava apagado da memória emergiu triunfante da treva dos dias para me regressar ao tempo em que tudo aconteceu. Levou-me em retrocesso até essa origem e pelo suceder de imagens eu pude observar, mesmo navegando à velocidade dos astros, os enganos responsáveis pelo meu afastamento. Medo, tudo se tratou do receio que me fez agarrar as mais ilusórias salvações. Mas agora que estou de volta nada disso importa. Eu não sou o homem que vocês vêem na rua, nas praças, na contingência das relações humanas, na furtividade dos encontros clandestinos, aquele que encontram por acaso no café, ou convidam para a intimidade dos vossos lares. E nem o mais profundo vislumbre, nem a mais incisiva técnica de análise lhes pode revelar o homem que por este corpo se vos depara. Da última vez que aqui estive não foi muito agradável, disse e ouvi coisas que não queria. Este lugar não é nada do que falam os sonhos, tudo é frio e sem cor. Não traz qualquer consolo o autoconhecimento. No fim é tudo cinzas, cinzas e nevoeiro. Mas é a minha casa, não tenho outra, e agora que aqui estou quero aproveitar até ao último instante, porque não sei quando irei voltar, não sei quando estarei de volta. É claro que sinto alguma saudade disso aí em baixo, sinto a tua falta e tudo o que quero é trazer-te comigo da próxima vez, tenho essa esperança, mesmo sabendo que tu não irás querer, que isto não é sítio para ti, tenho que manter essa esperança.


*em agradecimento a Sir Elton John