Notas sobre o sobrenatural, seguido de prelúdio ao transcendente

por Nuno A.

Introdução

Sobrenatural é algo que se sobrepõe à ciência (no seu sentido mais lato), ou à natureza? Considerando que tudo é natureza, dizer que algo a extravasa é um absurdo, portanto sobrenatural é algo que escapa à explicação científica, o que não significa que não possa ter explicação científica, e menos ainda que não tenha explicação natural. Ora, se um determinado fenómeno tem lugar na natureza possuiu obrigatoriamente explicação natural. Desta forma nada é sobrenatural, quanto muito poder-se-ia dizer sobrecientífico. Parece-me então mais rigoroso considerar que a designação sobrenatural se aproxima mais da intenção de expressar algo que é fora do normal, vulgar. Neste sentido, nem a ciência teria mãos a medir para explicar todos os fenómenos invulgares que, ao longo do dia, nos ocorrem. Acontece que, nem sempre que as lanzudas viram à esquerda, ao invés de virarem à direita como habitualmente fazem, aparece alguém a reclamar o prémio do desafio de Randi. Não desta forma displicente, a exaltação do sobrenatural acontece mais predominantemente quando as consequências da constatação favorável implicam a consideração da existência de espíritos, seres extraterrestres, unicórnios alados, demónios sulfurosos, anjos violadores, et caetra. Ainda que, eu não possua qualquer relutância em dizer que eles existem, devo ressalvar, no entanto, que as suas existências me fazem tanta falta como as suas inexistências e vice-versa. O que não deve ser, de todo, a atitude de quem procura discernir a importância do sobrenatural na vida do homem médio.


Desenvolvimento

De uma forma, ou de outra, tudo o que existe justifica a sua subsistência no caso útil em que proporciona à contingência do real. Do geral ao facto, também o fenómeno sobrenatural, ou mais historicamente o culto hereditário do sobrenatural, ocupa um espaço que o homem genérico decide enquadrar na sua perspectiva do mundo. Desta forma, o sobrenatural acaba por ser um alicerce incontornável, quer pela sua afirmação, quer pela sua constante negação. Pelo que interessaria questionar qual a sua essência, não fosse esta questão existencial, geralmente de carácter questionável eficácia também, quando ao caminho que paulatinamente trilho será de maior orientação procurar descobrir a sua génese. Se o que no caso do sobrenatural se denota é a contraposição de um caso à natureza, mais concretamente ao saber assente, vulgar da mesma, justamente se retira daí a noção que o sobrenatural se posiciona, à priori, contra o conhecimento empírico, cientifico, religioso, metafísico, et caetra, do mundo. Podendo-se dizer, no entanto, que se trata de um filho renegado da ciência, porque, precisamente, se nasce da curiosidade e tentativa de explicação de um fenómeno. Um forma portanto, ainda que se possa dizer rudimentar, de gerar conhecimento contudo. Importa, então, discernir o nódulo que determina a separação do culto sobrenatural da ciência propriamente dita. Neste aspecto apenas a assumpção de carácter dogmático poderia proporcional tal ruptura, e, a contribuir para tal está a defesa das referidas visões dos fenómenos. De notar o facto de os fenómenos sobrenaturais se encontrarem geralmente alicerçados em visões e não em outras provas materiais, porventura até mais sólidas. O facto é que as visões e outras experiências sensoriais de grau avançado surgem, não raramente, como provas associadas à construção de um saber dogmático. O fenómeno surge sempre de uma forma acabada, ou seja, aparece um anjo e não apenas uma pena, aparece uma nave espacial e não apenas uma peça qualquer dessa nave, aparece um fantasma e não apenas a sua roupa. Este tipo de fenómeno nunca deixa dúvida na sua descrição, ou é sobrenatural, ou não é natural. O que, de resto, não esta de acordo com a experiência simples da realidade. Quando, por exemplo, um homem médio em uma rua comprida pensa ver um familiar entre os transeuntes, que posteriormente se revela afinal ser um estranho. Esta situação tão vulgar vista à luz do sobrenatural não poderia ter outro desfecho que não fosse afirmar-se que a pessoa avistada era não só um familiar, como de certeza, um que havia já morrido. A acrescentar a isto surge, não sem maior espanto, a circunstância de que para se identificar fenómenos sobrenaturais seria certamente necessário possuir um vasto conhecimento de tudo o que não é sobrenatural, de forma a não existirem equívocos. Seria por demais risível surgir, hoje, uma cátedra científica de renome a afirmar o helicentrismo. Acontece que no culto sobrenatural não se colocam sequer este tipo de questões, a vontade moral de afirmar o dogma não permite concessões.

Conceitos a reter da síntese:

I. O sobrenatural ocupa um espaço legítimo na realidade.
II. O sobrenatural nasce da ciência, enquanto busca de conhecimento, ainda que dela se separe para abraçar o dogmatismo, o que pode indiciar a germinação de um carácter moral.

Os fenómenos sobrenaturais caracterizam-se por surgirem sempre aos olhos dos crentes como factos acabados, para que preencham os requisitos do dogmatismo.


Prelúdio ao transcendente

O uso da noção de infinito permite uma série de extrapolações arbitrárias acerca de todo o tipo de assuntos. Facto esse que se assume determinante ao desfecho absurdo de todas as deduções lógicas. Considerando a redução ao relativismo, ou a explosão ao absoluto, todos as deduções podem ser atacadas de tal carácter aparentemente libertador, mas que, contudo, se revela imprudente, fútil e viciado. Também o entendimento de transcendente surge, geralmente, afectado por esta displicência. Aqui, porém, importa contrariar tal tendência e assumir o transcendente como escada sem fim à vista, ao invés de degrau inacabável. Situação em que o grande espinho reside na dificuldade de conseguir conciliar duas necessidades:
I. Ser um observador independente.

II. Conseguir uma lei universal.
A primeira implica que o objecto de estudo do observador nunca poderá ser todo o universo, mas somente uma parte dele, da qual se possa ele abstrair. A segunda exige que também o observador seja abrangido pela lei que formula. Nesta aparente contradição reside a génese do infinito, que não passa de um paradoxo. Ou vejamos, toda e qualquer visão necessita de um observador, a natureza é-nos chegada pelos sentidos, contudo, nós fazemos parte da natureza, pelo que somos uma parte de si a observar o restante, partindo de um corpo com certas capacidades. Compreendendo isto devemos ser capazes de adivinhar as suas limitações. Certamente que muitas, contudo, neste caso da concepção de infinito, interessa a limitação do tamanho, ou melhor, a nossa orientação para delimitar partes do universo, quando o universo é um todo. A ideia de infinito diz-nos que uma maça é do tamanho de um carro, e que um carro é do tamanho de uma formiga, e que uma formiga é do tamanho é do tamanho do universo. Tendo isto em atenção, penso que deveríamos ficar por aqui e regressar ao transcendente. Retrocedendo, portanto, à aparente contradição atrás referida, importa clarificar que, não se podendo provar a sua impossibilidade, deve-se assumir possível a formulação de uma lei universal por parte de um simples observador. Com todos estes factores reunidos, pode-se então iniciar a busca da transcendência. Avaliando simplesmente a palavra, temos que ela se refere à passagem além do normal, do ordinário e vulgarmente conhecido. O que não implica, apesar de abranger essa noção, que passar além seja ultrapassar a natureza, aliás, da comparação de transcendência com sobrenatural, pode-se retirar que, ao contrário do sobrenatural, transcendência escusa, ou perde, para o geral a implicação de um plano extranatural. Pura e simplesmente podemos dizer, de uma corrida de cem metros, que o atleta vencedor conseguiu, para além da vitória, transcender a marca do recorde mundial. O que nos dá a ideia de que o transcendente é transitório e que, ainda que o possa não ser até ao infinito, se apresenta apenas como objecto de mediação. Que é o que acontece quando se entra pelo caminho mais corriqueiro e desinteressante da palavra. Quando no fundo o que interessa é a transcendência no sentido em que a mesma, para além de representar a ultrapassagem de uma fasquia, envolve também a transformação após essa fasquia, ou seja, a transcendência da realidade. De facto são inúmeras as concepções que nos levam para novos mundos, como os universos paralelos, a metafísica, o Reino de Deus, a Terra Média, A Terra do Nunca, O Pais das Maravilhas, et caetra. Contudo, em todos estes, continua a realidade tal como a conhecemos a existir, ou seja, tal como existe, salvo raras excepções discutíveis de alguns iluminados, um estado em que a realidade inteira tenha transcendido para dar origem a uma nova realidade. A realidade por assim dizer não se transcende, tranforma-se, mas na esteira de um trilho ininterrupto, sem novos degraus. O que nos deixa apeados em uma estação desinteressante. Justamente porque apenas nos importa a mudança que vai ao fundo da essência e refunde as suas bases.

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