As Fundações

por Nuno A.

Nuno Araújo
Ao Magnífico Rogério de Maia Ferreira

Valoroso príncipe, é de senso que um servo não pode oferecer mais do que possui e, ainda assim, a tanto não lhe chegando o engenho e a fortuna, que ao menos demonstre a humildade de reconhecer que sempre acreditou mais alto que a sua real mesura. Pois então que este documento correspondendo a uma cartografia de pântanos e desertos não seja geografia que lhe desperte a ambição, se é firme que a lealdade de um homem se mede pela sua fé, acreditando este súbdito aí residirem os alicerces deste mundo ao ponto de estar disposto a enfrentar a ira do seu soberano, que no fim, pelo menos pela desgraça, neste aspecto, possa ficar provada a sua sincera devoção.



I
As Fundações e o Tempo

“porque desde o início me tem vindo a ser ministrado o conhecimento do fundo e continuamente negada a luz da beleza, resta que a minha missão neste mundo seja dar a conhecer o chão a esta altura toda”

Quem de entre nós, ao se deparar com a glória das edificações humanas, duvida que o seu poder advenha da altura, fecha os olhos e procura rastrear pelo odor do excremento os escoadouros das suas fundações?
Contudo, desde o princípio dos tempos que um dos maiores atributos das sociedades tem sido a capacidade que demonstram para resistirem às forças da natureza e se desembaraçarem dos seus próprios dejectos.
Os primeiros exploradores modernos que se depararam com a existência de Machu Pikchu, foram assombrados pela descoberta de uma edificação humana a dois mil e quatrocentos metros de altitude, mas apenas muitos anos depois quando a estupefacção deu lugar à lucidez é que se deram outros à evidência que todo aquele esplendor só chegou aos nossos tempos devido a um avassalador sistema de drenagem.
Quer falemos de templos ou ideais, tronos ou princípios, palácios ou leis, a sua capacidade de perdurarem nos anais encontra-se não na beleza das virtudes que ostentam ou nas manhas da pérfida que abrigam, mas na robustez das suas fundações e, porque são estas construídas antes de tudo o resto e o seu único objectivo é resistir ao tempo, tanto podem conceder sucesso ao carácter como ao logro.
Quantas cidades não foram, são e serão destruídas porque os seus cidadãos, convencidos da virtude das suas aspirações, descoram as defesas e quantas mais ainda, sendo antros da mais maldita treva, porque assentam em alicerce firme, não resistiram, resistem e resistirão a toda a investida?



II
Da natureza das Fundações

“é um facto que o honrado tem subsistido mais pela sua capacidade de sofrimento do que pela luz do seu ideal, ao passo que o egocêntrico necessita constantemente do conforto para perdurar na sua ilusão”

Antes de mais importa definir que, para efeitos do que aqui se discute, ou seja, a arquitectura das sociedades, fundação diz respeito a todo e qualquer sistema basilar onde se apoia um edifício ideológico.
Seja qual for o tipo de fundação que estejamos a tratar, quando falamos de ideais a sua substância é sempre a fé; a capacidade de acreditar constitui invariavelmente a matéria-prima de qualquer edifício social. A este nível, no entanto, é ainda longe a orientação, isto é, a identidade da fé, aquilo em que ela se materializa, ou pretende materializar. Desta forma encontramo-nos numa dimensão em que não existe, ou melhor, não é possível trabalhar a religião, a ética, mas apenas o sucesso ou o fracasso; em que interessa sobretudo o alcance, a disposição e a interacção de cada um dos elementos na estrutura final.
Partindo destes pressupostos* é possível especular acerca das características que conferem solidez às fundações e consequentemente acerca das quais resulta a sua fraqueza. Assim a característica mais desejável que uma fundação pode ter é um compromisso entre a sua capacidade de suster os seus ideais e a sua tempodianámica, isto é, aptidão para experimentar baixa resistência à passagem do tempo. Relativamente aos aspectos que conferem ou podem conferir tal integração de vantagens, explicitá-los aqui seria como abrir as comportas de um oceano, para além do mais a maior parte deles são óbvios e já se encontram sobejamente estudados. Importa, portanto, e acima de tudo o resto, reter que todos os ideais são suportados pela crença e que esta apesar de ser um dom pode conferir maior ou menor estabilidade de acordo com a sua estrutura.


*Relativamente a todos estes aspectos seria possível apresentar uma rede de argumentos que sustentasse as conclusões sugeridas, no entanto, para além do facto dessa estrutura exigir um labor penoso e enfadonho, em nada concordante com o espírito rebuscado tão do agrado de vossa excelência, apresentaria três desvantagens. A primeira dizendo respeito à liberdade de pensamento, pois é previsível que a introdução do detalhe lógico na equação iria direccionar para um caminho que para além de não ser o único poderia até não ser o mais eficaz, o que só dificultaria o estudo. A segunda refere-se ao estabelecido pelo seu autor das pretensões mitológicas do documento suplantarem as suas esperanças científicas, ou seja, quanto menos explicações melhor. Por fim acho que um homem a sério não se esconde atrás da dialéctica, e já que teve este a coragem de apresentar o seu pensamento tem também o dever de assumir a responsabilidade pelo facto da conta dois mais dois não dar cinco, ao invés de dizer que a culpa é da matemática.




III
A Arquitectura dos Valores

“e, assim que em ónus do dom lhes é condenado o exílio da ética, passando esses toda a sua vida na missão subterrânea de lidar com as fundações é natural que fiquem insensíveis aos palácios da virtude”

No entanto, o sucesso de uma fundação encontra-se indelevelmente ligado ao carácter dos ideais que sustenta. Coloquemos esta afirmação na forma de exemplo. É uma evidência da nossa experiência que um alicerce necessita ser tanto mais capaz quanto maior for o esforço exigido pelo ideal suportado, desta forma um ideal grandioso terá necessidade de uma fundação igualmente abrangente, ao passo que um ideal mesquinho pode muito bem sobreviver à custa de qualquer fundação elementar. A força dos ideais reduzidos encontra-se no seu número ao passo que a vantagem dos extensos encontra-se na sua resistência.
Prosseguindo o nosso caminho a partir daqui surgem então três perguntas às quais se torna necessário responder, são elas: como se avalia a dimensão de um ideal? Qual é a relação, se é que existe, entre a dimensão e a importância de um ideal? E, onde acaba uma fundação e começa um ideal? Relativamente à primeira pode-se dizer que o tamanho de um ideal é directamente proporcional ao número de indivíduos que envolve ou pretende envolver. No que toca à segunda fica dito que não existe uma relação obrigatória entre os dois conceitos uma vez que as consequências dos ideais não tem que ver somente com o número dos que neles crêem, mas com o resultado de uma série circunstâncias, a maior parte das quais exteriores ao edifício. A terceira exige um maior número de considerações e desta forma será tratada mais detalhadamente.
De todos os aspectos envolvendo o assunto tratado talvez seja este o mais esquio na fixação do actual documento. De facto não existe nenhum utensílio, técnica ou método que nos permita colocar uma fronteira entre fundações e ideais, para além da noção de que ideal é o objecto da fundação e a fundação o instrumento do ideal. De uma forma muito simplificada pode-se dizer que fundação está para verbo como ideal está para substantivo. No entanto, recorrendo a uma perspectiva metafórica é relativamente simples distinguir um ideal da sua fundação. Pensando, por exemplo, em liberdade, é fácil separar o seu conceito (ideal) da sua substância (fundação). Toda gente sabe, com maior ou menor rigor, dizer em que consiste a liberdade, contudo, no que toca a definir a forma pela qual ela se providencia limita-se a dar exemplos práticos de algumas das suas manifestações. O que é errado, uma vez que as suas fundações não se revelam, ou melhor, não se comprometem com os ideais, isto é, em diferentes circunstâncias dois actos díspares podem conduzir ao mesmo resultado circunscrito.
Desta feita não é de espantar a afirmação que diz vivermos num mundo de aparência. Com efeito em toda a arquitectura das sociedades modernas se tem visto uma maior preocupação com a exuberância dos ideais que propriamente com as suas fundações. Quero dizer, parem por um momento e observem os escaparates. Palavras cujos conceitos demoraram centenas de anos a ser substancializados, (i.e. fundados) por grandes civilizações, são agora marcas registadas à mercê de qualquer discurso. É fácil hoje em dia dizer democracia, justiça, liberdade, amor… enfim, as ruas estão cheias de estátuas, tribunais, parlamentos, catedrais. Mas não sendo as suas fundações continuamente renovadas que mais são estas estátuas, estes tribunais, estes parlamentos, estas catedrais, que túmulos, que sepulturas, que mausoléus e que jazigos? As palavras são símbolos e os símbolos cumprem somente a sua função que é manterem-se constantes quando tudo o resto se transforma, o seu interior contudo tem que ser sucessivamente purgado, reavaliado, aperfeiçoado, o tempo encarrega-se desta função por intermédio de vários agentes, entre os quais se encontra o homem, no entanto é necessário que o ideal, a palavra, possua fundações que não ofereçam resistência a esta renovação, um bom sistema de drenagem que escoe a água da chuva e que se desembarace facilmente dos detritos.




IV
O Dilúvio e a Torre de Babel

“multiplicam-se os sacrários, mas onde está a santidade?”

De acordo com o descrito pela Bíblia, o todo-poderoso, quando foi sua intenção lavar o pecado da face da terra, mandou vir as chuvas e afogou os viventes, ficando desta forma provada a fragilidade das fundações terrenas. Ninguém estava preparado, excepto Noé, que achou graça aos olhos do seu Senhor, mas apenas porque recebeu instruções e construiu uma arca, isto é, se não tivesse usado a arca, morreria apesar da sua virtude, da mesma forma que havendo piratas na altura estes teriam sobrevivido, apesar da sua iniquidade. E, de facto, é simples conhecimento empírico que as chuvas atacam indiscriminadamente e não poupam ninguém. O ser humano é testado pela sua preparação, a sua capacidade de entender o mundo e não pela sua pérfida, o seu altruísmo ou o seu carácter. A natureza não favorece corações, para a natureza, bom é aquele que faz bem as contas. Em todo o caso, as virtudes que por aí se tem propagado aos quatro ventos, o que são? Salvos condutos, bulas, estilos de vida, que se adoptam de uma vez para todo o sempre? O que pretendem alcançar? Descargos de consciência, longas temporadas descontraídas em frente a uma televisão? O verdadeiro homem honrado não é aquele que tem princípios mas aquele que acredita que ele próprio é um princípio e que, desta forma, não os desprezando, mas sendo muito mais que os seus desejos e as suas ambições, se torna discípulo da natureza.

Outra história cuja análise nos poderá ajudar a compreender melhor a importância das fundações trata do destino da torre de Babel.
Em ordem a destruir a torre de Babel símbolo de união e poder dos homens, Deus, pretendendo evitar que estes realizassem todos os seus projectos, atacou as fundações e não os ideais, isto é, derivando a língua dos construtores ele logrou retirar o cimento que unia as suas crenças e dividiu uma enorme crença em várias crenças idênticas, mas isoladas. E deste golpe fatal, pode-se dizer, nunca mais a humanidade recuperou. Todos os povos continuaram a desejar o mesmo, isto é, a possuir os mesmos ideais, mas deixou de existir diálogo, pelo que se tornou impossível alcançar qualquer tipo de projecto. O ideal da torre era demonstrar em altura a glória do povo de Babel, cujo maior orgulho era a união, alcançar o céu seria, por isso, apenas um símbolo, uma evidência desse estatuto. Hoje, contudo, o que se passa é o contrário, constroem-se os símbolos e espera-se que a sua altura, magnificência, exuberância e poesia inspirem a união do povo.




V
Os Jardins Suspensos da Babilónia

“as liberdades são as catedrais dos tempos modernos”

Mas todo o ideal tem custos, necessita ser trabalhado continuamente. Habitar uma casa não é entrar nos seus domínios e repousar sob o seu abrigo, isto também o fazem os salteadores, mas, para além disso, abrir as janelas e deixar entrar o sol, cuidar do seu jardim, repor a telha que se partiu, encerar o soalho, isto é, tomar todas as providências para que ela não perca a sua identidade no tempo. É apanágio das sociedades modernas exibir as suas conquistas em tratados, acordos, compromissos, mas nas fundações de tudo quanto edificam estão presentes portas dos fundos, saídas de emergência, não porque escasseie a fé nos ideais professados, mas antes porque se tem consciência da fragilidade das fundações. Vivemos numa sociedade que se contentou e continua a contentar com a pilhagem dos valores. Fomos a Atenas, roubamos uma pedra da Ágora e colocámo-la num parlamento em Bruxelas, fomos a Jerusalém, encontramos um pedaço de lençol e colocámo-lo numa basílica no Vaticano, fomos ao Mundo Novo compramos o sonho e colocámo-lo num cinema em Paris. Entretanto saímos à rua nas nossas cidades e procuramos as fundações. A história não nos pertence, não somos herança da vontade que a construiu, o testamento dos nossos pais é-nos lido numa língua estrangeira. Algo contrariados ainda procuramos assumir o património, mas o fato que nos deixaram não nos serve. Olhamos em volta e tudo o que nos podem oferecer é novas liberdades, lenitivos mesquinhos de fundações insignificantes que se exibem nos frontispícios e pela rotatividade dos quais podemos riscar os dias, as semanas, os anos da nossa pena perpétua; a quem não se conhece a si próprio mais não resta que se embriagar no oceano das liberdades. Eles decidiram ser estrangeiros e eu o que sou?
E é nessa altura que nos percebemos nascidos no Exílio.




VI
Para uma Renovação das Fundações

“não, o verdadeiro homem moderno já não dá nomes, ignora os conceitos, já não quer telhados, nem sacrários, nem castelos, ele próprio é o seu ideal, e o seu ideal é ser fundação da humanidade”

Não é, no entanto, porque se perdeu do seu passado e nasceu órfão que o homem moderno se encontra desprovido de futuro no mundo. Muito pelo contrário, pois é precisamente por auspício desta contrariedade que ele se encontra finalmente em condições de ser parte da inevitável renovação. Ele, que desde o princípio dos tempos foi alicerce de ideais menores que a sua potencialidade, tem agora momento, porque lhe foram abstraídas as responsabilidades e as esperanças do sangue, de se fazer parte da bandeira de cidadãos do mundo que se espera representem a Terra perante o Universo. Sem prestar vassalagem a tronos, a ideais, a sedes, a capitais, é servo unicamente das suas capacidades. Ao contrário do homem que o precedeu não se deixa seduzir pelas ilusões de grupo, está só, mas pela primeira vez com consciência plena da distância a que se encontram os outros, funde um sentido mais íntimo de comunidade e, enquanto os demais brincam aos países, lança o olhar para lá da via láctea na esperança de uma nova companhia.
Contudo, para que se possa encontrar, este homem moderno necessita do seu caminho, uma formação, se por este termo se quiser entender as providências necessárias a que cresça uma fundação potencial. Desta forma serão mais propícias ao seu aparecimento as sociedades em que se privilegia o conhecimento como uma libertação e não como mera vantagem competitiva, uma vez que estas últimas incentivam apenas a que o homem se torne mais forte que os seus adversários, ao passo que a primeira luta para que ele atinja o pleno das suas capacidades. Ainda assim este contributo constituiu apenas um primeiro degrau, a instrução formal limita-se a equipar o homem moderno dos símbolos certos, mas é o mínimo que hoje se nos exige, o resto do percurso será com ele.

E agora que cheguei a estes termos, permita-me vossa excelência que vá um pouco mais longe no auguro do surgimento desta estrela ainda tímida, mas infinitamente capaz que se avizinha a que eu tomo a liberdade, por vias da responsabilidade que me calhou no seu achamento, de apelidar de “crença lúcida” e que constitui, por assim dizer, a unidade fundamental do homem que lhe anuncio. Dê-me licença que lhe diga que, para iluminar esta aurora celestial, esta estrela do novo céu, foi de si que desviei a luz.

1 comentários:

rogério disse...

Mas esse valoroso principe, nao me cheira confiança. ele nao é um mafioso qualquer que anda na lusiada a engatar miudas indefesas?! Humm...eu parace-me que sim e tem mais ele nao tem por onde cair morto só de tantas vezes de abrir a boca de tanto sono, cuitadinho!

a/c miss Catrina

agora eu:
tecer o discurso e nao o desenvolver com o intuito de o finalizar numa missiva realmente produtiva em pelo menos umas 26 paginas não augura grande fado ao estar-se a escrever linhas pela baia. a ser terá de ser e sendo que seja realmente presente e nao algo ligeiramente sombrio que habita uma certa memória do passado. cimentemos um dia e uma hora e que o duelo traga a soluçao que tanto se quer. nao será hoje uma vez que tenho mes e meio completo. mas o tempo veranil lá terá de chegar...

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